Cria... Dor
Onde existe dor:
Não há CRIAdor.
A dor: crias não permite.
A dor tende suprimir a arte.
Da dor, nada cresce ou brota.
Talvez sangue, talvez corte,
Talvez um coágulo de aorta.
A dor não tem limite!
E eu, já sem nenhuma cor,
Imploro e grito: AR... dor!
Carlos Kurare
25/04/2012 - Sampa
JIMMY CLIFF - I CAN SEE CLEARLY NOW TRADUÇÃO - LEGENDA
Dor e arte
O poeta e crítico Ferreira Gullar examina a relação entre sofrimento e criatividade
FERREIRA GULLAR
Especial para a Folha
Quando se fala da relação entre a dor e a arte, deve-se distinguir a dor física da dor moral. Em minha opinião _e até onde posso afirmar baseado em experiência própria_ a dor física tende a anular as condições psicológicas propícias à geração da obra de arte. Se não é impossível que alguém, atacado de forte dor física, seja levado, por efeito dela, a elaborar um poema, tal ocorrência seria uma exceção. Uma exceção porque a dor física, se de forte intensidade, tem o poder de anular momentaneamente nossa capacidade intelectual, reduzindo-nos ao nosso corpo _o corpo que dói. E quem produz a arte é o corpo que pensa, que inventa, sonha, fantasia. O filósofo inglês Alfred North Whitehead, autor com Bertrand Russell, de um livro importante para a filosofia do século 20, intitulado “Principia Mathematica _observou que “quando nos damos conta do funcionamento de nossas vísceras, alguma coisa vai mal. O mesmo Whitehead, desenvolvendo esse ponto de vista, já afirmara, noutra ocasião, que o que caracteriza o corpo vivo é a não percepção dos elementos que o constituem, enquanto integrantes desse organismo. Exemplifico; se minha mão toca em minha perna, percebo a mão e a perna. Mas não percebo os contatos que eventualmente ocorram entre os músculos, tendões e ossos que constituem minha mão; sei que esses músculos, ossos e tendões, existem, mas não os percebo; se sinto a existência de qualquer deles _o que em geral se manifesta pela sensação desagradável a que chamamos dor_ é que ali a máquina do corpo deu defeito.
Pode ser esclarecedor compararmos, neste caso, o corpo humano com, digamos, uma aparelho de televisão. Se em determinado ponto dele, de repente, começam a ocorrer estalos e faíscas, é que algum defeito está interferindo no funcionamento normal do aparelho. Se o aparelho de TV fosse um ser vivo, certamente sentiria dores. Talvez se possa então afirmar que a dor é o sintoma do mau funcionamento do organismo vivo _o sinal indicativo de que alguma coisa vai mal naquele ponto que dói.
Ou noutro ponto, como parece ocorrer com certas dores de cabeça que são reflexo do mau funcionamento do estômago, por exemplo. Mas, qualquer que seja o caso, a dor física tem a capacidade de tornar o nosso corpo anormalmente presente em nossa consciência, até mesmo de ocupá-la a tal ponto que mal conseguimos pensar em outra coisa. Nessas condições, é impossível criar uma obra de arte. Logo, se alguma dor efetivamente provoca o surgimento da obra de arte, terá que ser a dor moral.
A relação entre a dor _o sofrimento, a infelicidade_ e a arte parece geralmente admitida, embora não se saiba se essa relação existe e, no caso de que exista, de que tipo é. Uma relação causal? Uma relação sublimatória? Uma relação meramente temática?
Por outro lado, parece certo que os momentos de tranquilidade satisfeita não são estímulos habitualmente geradoras da obra de arte. As pessoas extrovertidas, que se satisfazem com atividades esportivas ou semelhantes _caracterizadas mais pela ação do que pela reflexão_, não costumam se dedicar à atividade artística. Mas não só essas; de modo geral, qualquer pessoa que se sinta vivendo um momento de felicidade e plenitude, dificilmente sentirá necessidade de produzir arte, mesmo sendo artista.
Isso não significa que esses próprios momentos de plenitude não são, eles próprios, geradores de arte. André Gide afirmou, certa vez, que “a arte nasce quando viver não é suficiente para exprimir a vida”. Ou seja, se concordarmos com Gide, a arte é feita para suprir uma carência; nos momentos plenos _quando a máquina da vida parece funcionar satisfatoriamente bem_ a arte é desnecessária. Talvez assim se explique a tendência a associar-se a criação artística com o sofrimento. Aqui podemos estabelecer um paralelo entre a dor física e a dor moral. Do mesmo modo que o organismo vivo, quando está funcionando bem, por assim dizer, ignora-se a si mesmo, as pessoas também, na sua vida cotidiana, se tudo corre bem, vivem o presente pelo presente, sem qualquer preocupação com seus problemas e muito menos com o problema fundamental da vida humana: a inevitável morte.
E, do mesmo modo que, se o estômago anda mal, o homem se dá conta de que tem estômago porque ele dói, também se algum drama lhe ocorre _a perda de um ente querido, por exemplo_, ele é subitamente chamado a refletir sobre sua própria condição humana. Essa reflexão pode conduzir à necessidade da obra de arte.
Neste paralelo que estabelecemos entre a dor física e a dor moral, fica evidente uma diferença essencial: até mesmo porque envolve questões existenciais, filosóficas, afetivas, morais, a dor moral _ao contrário da dor física, que nos reduz à condição de “corpo”_ nos coloca diante de nossos valores e de nosso destino. Enquanto a dor física tende a nos diminuir por entorpecer a reflexão, a dor moral tende a nos ampliar, por nos obrigar a ela.
Em resumo, tanto a dor física quanto a dor moral nos levam a tomar consciência da realidade. Detenhamo-nos um instante neste ponto. Se quando meu estômago está funcionando bem, não tomo conhecimento dele e só o tomo quando funciona mal, isso nos leva inevitavelmente a concluir que o normal é possuir estômago sem saber que o possui. E não se daria o mesmo, no plano da dor moral? A normalidade não consistiria em ignorar a realidade da mesma maneira que ignoramos o nosso estômago? Acredito que, se se tratasse de uma simples opção, dificilmente alguém, saudável, preferiria viver com a certeza sempre presente de que está condenado à morte, de que o amor que vive agora não vai durar, de que dentro de alguns anos estará velho e achacado de doenças. O homem não quer sofrer. Se meu estômago dói, não posso ignorá-lo, mas farei o possível para me livrar dessa dor. Se a minha vida dói, a opção é mudar de vida ou, se não posso fazê-lo, descobrir um modo de fugir da realidade dolorosa: pelo misticismo ou pela bebida ou pela droga, etc. A dor, portanto, além de ser um sintoma, é uma exigência do corpo _e da vida_ para tomarmos consciência dos problemas e procurarmos resolvê-los. Se uma dor de cabeça pode ser eliminada com analgésico, para a dor da existência muitas vezes não existe remédio. E é diante da dor sem remédio, do problema sem solução, que surge a necessidade do poema ou da sinfonia: a arte é, de certo modo, uma solução para os problemas sem solução.
Cumpre observar, no entanto, que, se não é a dor física, tampouco é a dor moral que gera a obra de arte. A dor moral nos obriga a encarar a realidade, a redescobri-la na sua verdade, e essa redescoberta é que gera a obra. Sendo assim, devemos concluir que, não apenas a dor, mas qualquer outro fator de vida, que nos tire do equilíbrio em que nos mantemos à beira do abismo existencial, pode funcionar como espoleta do poema ou da sinfonia. Platão dizia que o conhecimento nasce do espanto. A arte também.
Um filósofo alemão, que teve grande influência sobre os artistas da segunda metade do século 19 e mesmo sobre artistas e pensadores que viveram depois. Arthur Schopenhauer, estabeleceu uma ligação estreita entre a dor, chegando a considerar a arte uma espécie de redenção do ser humano, condenado, segundo ele, desde que nasce até que morre, ao sofrimento. Schopenhauer pinta o destino humano em cores negras. “Na primeira mocidade _diz ele_ somos colocados em face do destino que se vai abrir diante de nós, como as crianças em frente ao pano de boca de um teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que vão passar-se em cena; é uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Aos olhos daquele que sabe o que realmente se vai passar, as crianças são inocentes condenados não à morte mas à vida, e que todavia ainda não conhecem o conteúdo de sua sentença.”
Em seu modo de ver, a causa de todo sofrimento do ser humano é a necessidade de querer, a que está submetido. O homem sofre por querer o que não tem e, quando o consegue, sofre porque a satisfação do desejo é ilusória e efêmera. Diz Schopenhauer: “Querer é essencialmente sofrer e, como o viver é querer, toda a existência é essencialmente dor.”
Continua à pág. 5-12
Dor e arte
07/05/95
Seu livro “Dores do Mundo começa assim: “Se a nossa existência não tem por fim a dor, pode dizer-se que não tem razão nenhuma de ser. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um mero acidente, e não a própria finalidade da existência. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra.” E acrescenta adiante: “pode se considerar a nossa vida como um episódio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada.”
O caminho que ele aponta para o ser humano enfrentar sua miserável condição é, logicamente, a renúncia ao desejo, ao querer: “O homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo, só vê as coisas que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos incessantemente renovados para desejar e querer, já aquele que penetra a essência das coisas, que domina o conjunto, encara, pelo contrário, com tranquilidade todo o desejo e de todo o querer. Daí em diante, a sua vontade desvia-se da vida, repele os gozos que a perpetuam. O homem chega então ao estado da renúncia voluntária, da resignação, da tranquilidade verdadeira, e da ausência absoluta da vontade”. Dentro dessa concepção, a arte assume para Schopenhauer um papel fundamental: por ser contemplação desinteressada _livre de todo propósito egoísta, ela nos dá o sentimento de paz em toda a sua plenitude. E de todas as artes a música é, segundo ele, a que melhor cumpre essa função:
“Quando ouço música, a minha imaginação compraz-se muitas vezes com o pensamento de que a vida de todos os homens e a minha própria vida não são mais do que sonhos dum espírito eterno, bons e maus sonhos, de que cada morte é o despertar.”
Dentro de sua concepção filosófica, a arte funcionaria como expressão dessa necessidade de fugir às contingências da vida, um equivalente à renúncia ao desejo. “O que dá ao trágico um impulso particular para o sublime _diz ele na obra ‘O Mundo como Vontade e Representação’_ é a revelação deste pensamento, de que o mundo, a vida, não pode satisfazer completamente, e por consequência não é digna de que fiquemos presos a ela: é nisto que consiste o espírito trágico_ em conduzir-nos à resignação”.
É fato indiscutível que o sofrimento e a morte são dados consubstanciais à existência humana, ou seja, ignorá-los é simplesmente falar de alguma coisa que não é a vida. A maior parte do tempo de nossa vida é constituída de fatos banais, mesmo porque não se suportaria viver com a permanente intensidade dramática de uma peça de Shakespeare ou de uma tragédia de Sófocles. Felizmente, o dia-a-dia é corriqueiro e banal, com grandes tumultos e dramas. Isso torna a existência monótona e, por essa razão, as pessoas buscam meios e modos de quebrar-lhe a monotonia, já seja promovendo festas, bailes, jogos, espetáculos, enfim, toda a série de entretenimentos, como os que encontramos em nossa época: a televisão, o cinema, o teatro, o show musical, o esporte, a leitura de jornais, de revistas e livros, etc.
De acordo com a classe social a que pertence e as circunstâncias da época, o indivíduo experimenta uma vida mais ou menos tranquila ou atormentada: por exemplo, os moradores das favelas do Rio de Janeiro vivem em permanente sobressalto, numa atmosfera de drama quase equivalente às tragédias e dramas do teatro ou do cinema: são fatos frequentes, em seu cotidiano, tiroteios e mortes, agressões, crueldades, uma permanente situação de pânico e insegurança. Nem por isso as pessoas que enfrentam essa vida atormentada escrevem peças de teatro, poemas, ou fazem filmes sobre tais coisas. Nem mesmo os sambas, que os artistas dessas comunidades compõem, versam sobre esses problemas.
A tese de Schopenhauer de que a vida humana ou é dor ou é monotonia, já que a felicidade dura pouco e o que prepondera é o sofrimento, pressupõe que as pessoas não suportam o cotidiano e que, por essa razão, aspiram à morte. Não é isso, porém, o que a experiência nos mostra: as pessoas, mesmo as que têm uma vida de privações e sofrimentos, querem continuar vivas e mantêm acesas a esperança de uma vida melhor no futuro.
Uma coisa que o filósofo alemão parece não ter percebido é que a gente mais pobre _que experimenta, além do sofrimento natural da existência, as privações da miséria_ tem mais disposição para se divertir, é mais alegre, efusiva e vital que a maioria dos que desfrutam de melhores condições materiais de vida. O desencanto, que a filosofia de Schopenhauer reflete, encontra-se mais facilmente em integrantes da classe média e da classe rica _à qual ele próprio pertencia_ entediados e temerosos de arriscar o que conseguiram. O que parece mostrar que a relação entre o sofrimento e a vontade de viver não é tão simples quanto ele imaginava, e que a renúncia a todo o desejo e a aspiração ao nada não são a única resposta possível às dores do mundo. A intuição dessa complexidade encontramos na visão de outro filósofo alemão, Friedrich Nietzsche. Indagando a razão do surgimento da tragédia na civilização grega, marcada pelo desejo da beleza, da festa, da alegria, responde que, talvez, aquela inclinação para o mito trágico, venha exatamente, da força, da saúde exuberante, enfim, do excesso de vitalidade do povo grego. Identificando o pessimismo com a racionalidade socrática, Nietzsche, em prefácio a seu livro “A Origem da Tragédia”, afirma que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético, criação de um Deus puramente artista, absolutamente destituído de escrúpulos e de moral, para quem a criação e a destruição, o bem e o mal, são manifestações de seu capricho indiferente e de sua onipotência. Nietzsche observa que nada se opõe mais a essa interpretação puramente estética do mundo do que a doutrina cristã que, com seu moralismo, relega a arte ao reino da mentira, isto é, nega-a e a maldiz. A essa visão moralista _que reprime as paixões, teme a beleza e a volúpia_ Nietzsche contrapõe o espírito dionisíaco, o êxtase dionisíaco, a identificação com o que ele chama de “a incomensurável alegria primordial da existência”.
Não resta dúvida que a dor, o sofrimento, é com frequência a matéria-prima do teatro, do romance, do cinema, das novelas de televisão. Mas isso não significa que as pessoas desejem viver no sofrimento ou que prefiram o sofrimento (o drama, a tragédia), ao cotidiano tranquilo e rotineiro. Pelo contrário, a rotina é condição necessária à preservação da tranquilidade e segurança interior. Há aqui um detalhe que deve ser considerado: uma coisa é viver na tragédia, outra coisa é vê-la no teatro ou lê-la no livro. O teatro, o romance, a poesia, o cinema, foram criados pelo homem exatamente para quebrar a monotonia da vida. Do mesmo modo, que antigamente, nas tribos, o contador de histórias distraía os demais com narrativas às vezes assustadoras, às vezes misteriosas, dramáticas ou engraçadas, hoje quem nos distrai, nos assusta ou nos diverte é o teatrólogo, o poeta, o romancista, o cineasta, o novelista de televisão.
Aristóteles já havia compreendido que a tragédia cumpre uma função social (cultural), quando definiu o seu papel catártico sobre o espectador. Goethe considerava que essa catarse se fazia igualmente sobre o autor. De qualquer modo, a experiência simbólica ou fictícia do sofrimento é uma necessidade do ser humano. O espectador não vai ao teatro ou ao cinema porque aspira a mais sofrimento em sua vida: ele vai para viver uma vida de graça, para experimentar a emoção dos dramas humanos, sem pagar o preço que se paga na vida real.
Quando a luz do cinema acende, o sofrimento se revela fictício, provocando um alívio equivalente ao que experimentamos ao acordar de um sonho mau. Exatamente o contrário do que ocorre na vida, onde o sofrimento é real, a perda é real, a luz não acende ao final do espetáculo nem os atores, que “morreram” em cena, se levantam, vivos outra vez, para agradecer os aplausos. Não obstante, e por isso mesmo, a vocação do homem é para a felicidade. E a arte é, contraditoriamente, uma afirmação dessa irrenunciável necessidade. Já dizia o poeta paraibano Augusto dos Anjos _que aliás era leitor de Schopenhauer_ que “a mais alta expressão da dor estética/ consiste essencialmente na alegria”. De fato, o próprio Schopenhauer reconhece, quando fala da música, que através dela o compositor consegue superar a vontade (o querer) que implica sempre em sofrimento.
A relação entre a dor e a expressão artística deve ser examinada na sua complexidade. Uma obra de arte, mesmo a que mais cruamente expresse o sofrimento humano, não é igual a um grito de dor. Um grito de dor não é arte. Noutras palavras, a dor pode ser matéria-prima da arte _em muitos casos_ mas a obra mesma resulta da elaboração complexa da emoção e da linguagem estética, visando criar uma totalidade cujo significado transcende a experiência que a motivou. A própria atitude do poeta ou do dramaturgo, quando se dispõe a transformar uma experiência dolorosa em obra de arte, já indica uma superação da dor mesma, tornada objeto de reflexão. Um necessário distanciamento estabeleceu-se entre o homem que sofreu e o seu sofrimento para que ele tenha sido capaz de transformá-lo numa peça ou num poema.
Certamente a experiência existencial está viva nele, mas já não é a mesma, porque a dor real, se nos atinge profundamente, nos incapacita de, enquanto a sofremos, transformá-la em prazer estético. A formulação, na obra, do sofrimento experimentado guarda, conforme o caso, diferentes distâncias com respeito à dor vivida. Mas nunca é a dor mesma que aparece na obra, pelo fato de que a obra é a superação da dor, a sua transformação alquímica em alegria, em prazer estético. Como disse Fernando Pessoa:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
O homem, por sua própria natureza, hesita entre a segurança e a aventura, a tranquilidade e a emoção. Por isso, ao mesmo tempo que aceita a rotina do cotidiano, é induzido a violá-la; preserva seu casamento tedioso e busca no cinema ou na novela de televisão a paixão fictícia que não pode viver. Isso tanto vale para o expectador e leitor como para o autor: de algum modo, através dos personagens que cria, das melodias que concebe, o artista vive uma outra vida, experimenta outras emoções, em suma, escapa à pobreza e aos limites de sua vida banal. E é precisamente o grau em que essa necessidade se manifesta no indíviduo _somado certamente a outras qualidades_ que determina se ele será um consumidor ou um criador de obras de arte. Deve-se observar, porém, que o que caracteriza o artista não é a simples necessidade de fugir à realidade banal e dolorosa, mas a capacidade de criar, com sua arte, um universo simbólico próprio, dentro do qual o mundo e a vida, com suas incongruências e enigmas, se tornam de algum modo assimilável.
Albert Einstein, num discurso pronunciado por ocasião do sexagésimo aniversário do físico Max Planck, afirmou que “o homem procura formar, de alguma maneira, mas segundo a própria lógica, uma imagem simples e clara do mundo. Para isso, ultrapassa o universo de sua vivência, porque se esforça em certa medida por substituí-lo por essa imagem. A seu modo, é esse o procedimento de cada um, quer se trate de um pintor, de um poeta, de um filósofo ou de um físico. A essa imagem e à sua realização, consagra o máximo de sua vida afetiva para assim alcançar a paz e a força que não pode obter nos estreitos limites da experiência agitada e subjetiva”. De fato, a experiência estética é essencialmente diversa da experiência real. A experiência real tem, obviamente, o peso da vida, a densidade, a complexidade específica e a irreversibilidade da vida. A experiência estética não. Trata-se de uma experiência “fictícia”. Nela, o homem-autor lida com significações e não com fatos; o terreno no qual se move não é o chão do planeta, mas a linguagem; o tempo que “vive” na obra não corresponde ao tempo real da vida transcorrido enquanto a elaborava. Por isso mesmo, a dor que eventualmente experimentou em sua vida e que teria motivado a obra, nela deixa de ser a dor real, perde a especificidade da dor real; transforma-se, pela reflexão e assimilação ao universo simbólico do poeta, em puro significado, ainda que ligado à experiência vital. E aqui há um outro ponto a sublinhar: a significação poética não é da mesma natureza que, por exemplo, a significação matemática ou filosófica. A significação poética nunca alcança o nível de abstração e generalidade que aquelas alcançam. Ela se nega a tornar-se conceito, lei ou princípio teórico. A poesia, a arte, é um tipo de realização intelectual que se situa entre a experiência direta do mundo e a formulação conceitual abstrata: o artista rejeita a experiência imediata do real, na medida em que a transforma em linguagem, mas também rejeita a sua transformação em conceito abstrato porque deseja preservá-la como vivência individual e afetiva. Essa é a razão por que não seria descabido afirmar que, se o artista, como todo ser vivo, necessita escapar à dor, não quer fazê-lo ao preço de renunciar à própria vida.
FERREIRA GULLAR é poeta e críticode literatura e artes plásticas, autor de “Luta Corporal”
e “Poema Sujo”, entre outras obras
Evento discute arte e dor
07/05/95
Um comentário:
“a arte nasce quando viver não é suficiente para exprimir a vida”
Excelente passeio realizado por Ferreira Gullar pelo campo filosófico
na tentativa de estabelecer relação entre a expressão criativa e a dor.
Independente dos motivos geradores da arte, os frutos produzidos pelos
seus sensíveis criadores são muitíssimos bem recebidos pelos seus apreciadores.
Como canta Jimmy Cliff:
"Todos os sentimentos ruins desapareceram..."
Abraços.
Postar um comentário